Vozes da Ferrovia com Clarice Maria de Aquino Soraggi

A Força da Memória Ferroviária: Clarice Soraggi e os 50 Anos Dedicados aos Trilhos do Brasil

“Descobri um amor incondicional pelos trilhos da vida — e sigo acreditando que o Brasil trem jeito.” – Clarice Soraggi

Clarice Maria de Aquino Soraggi ingressou na ferrovia em 1976 como jovem engenheira mecânica e, desde então, transformou seu percurso profissional em uma missão de vida. Construiu sua trajetória entre operações, segurança, acidentes ferroviários, gestão associativa e defesa institucional. Tornou-se uma das vozes mais influentes na preservação da memória ferroviária, na valorização dos profissionais do setor e na luta por um Plano Nacional Ferroviário que priorize o interesse público. Sua história inspira novas gerações ao mostrar que inovação só existe quando o passado é respeitado e que a ferrovia continua sendo identidade, desenvolvimento e futuro para o Brasil.

Nesta entrevista, Clarice nos conduz por um percurso emocionante, daqueles que começam nos trilhos do passado e avançam rumo aos sonhos do futuro. Suas palavras nos permitem transitar por estações de memória, coragem e esperança, lembrando que cada ferroviário carrega um pedaço vivo da história do país. É um convite para seguirmos viagem com os olhos no horizonte e o coração atento ao pulsar dos trilhos.

Prepare seu bilhete e embarque nesta viagem!

1 – Quando foi que você percebeu que a ferrovia não era apenas transporte, mas também memória e identidade de um povo?

A engenheira recém-formada, com experiência de apenas 1 ano de trabalho em projeto mecânico, ingressou na ferrovia em abril de 1976 e se deparou com um mundo de atividades inerentes a cada setor ferroviário. Ao trabalhar na ferrovia, você encontra um viés técnico específico das áreas operacionais e um universo de regras pré-estabelecidas, passadas de geração em geração.

A ferrovia não apenas trouxe desenvolvimento e crescimento para as cidades, mas principalmente levou e trouxe histórias de indivíduos que se enraizaram ao longo dos trilhos. À medida que o tempo passava, a engenheira se encontrava em seu setor de trabalho conhecendo as regras, adaptando-se às circunstâncias, buscando eficiência no dia a dia e descobrindo, ao final, um amor incondicional pelos trilhos da vida até hoje.

2 – Durante suas gestões na AENFER e na FAEF, qual foi o maior desafio em defesa dos ferroviários?

Desde a década de 1990, no movimento de transformação do setor ferroviário, acompanhei a criação da CBTU, FLUMITRENS, CENTRAL, concessão das malhas da antiga RFFSA, criação da ANTT, criação do DNIT, extinção da RFFSA, transformação da VALEC, criação da EPL e a fusão da VALEC com a EPL, transformando-se em INFRA.
O maior desafio até hoje é buscar visibilidade para a necessidade do reconhecimento e respeito ao ferroviário brasileiro, bem como a salvaguarda do patrimônio ferroviário nacional, que infelizmente se perdeu.

Também é urgente termos, de fato, um Plano Nacional Ferroviário com prioridades de expansão e criação dentro de um plano de governo, proporcionando o crescimento do setor, impulsionado pela iniciativa privada, porém com obrigações alinhadas aos interesses nacionais.

3 – Se tivesse que escolher um trecho ou ferrovia que representa a “alma dos trilhos brasileiros”, qual seria?

Para mim, é a primeira ferrovia brasileira: a Estrada de Ferro Mauá, inaugurada em 30 de abril de 1854, no Rio de Janeiro. Idealizada pelo empreendedor Barão de Mauá, ligava o porto de Guia de Pacobaíba (atualmente Mauá) a Fragoso, com 14,5 km de extensão. Esse marco ferroviário deveria ser um exemplo de orgulho para todos nós brasileiros, e em especial para os ferroviários, mas se encontra em péssimo estado, sendo guardado por abnegados que ainda insistem na sua preservação. Esse lugar deveria ser mantido como marco histórico ferroviário.

Penso que Paranapiacaba/SP, por sua importância, beleza e características, também deveria ser preservada.
O brasileiro deveria poder embarcar em qualquer estado em um trem de passageiros e se deslocar pelos trilhos do país, a exemplo da viagem Vitória–Minas.

Sonhando mais um pouco: termos mais trens turísticos, como o Trem do Vinho, Trem do Forró, Trem das Cachoeiras e o Trem da Linha Mineira (São Lourenço/MG a Cruzeiro/Passa Quatro/MG), ao longo do nosso lindo Brasil.

4 – Como você enxerga a ligação entre preservar a história dos trilhos e construir o futuro da ferrovia?

Tenho convicção de que nosso passado precisa servir de base para uma boa construção. Aprendermos com os erros e olhar sempre para o futuro com inovação, novas tecnologias, novas diretrizes e prioridades, porém nunca desprezando o que, e quem, iniciou tudo. Não se pode iniciar nada ou seguir em frente sem, em algum momento, ter olhado para o passado.

5 – Qual o papel das mulheres na ferrovia e o que a sua trajetória mostra para as novas gerações?

Sou de opinião que, em primeiro lugar, não existe papel para mulher ou homem; existe o papel do ser humano, seja ele mulher ou homem. A ciência confirma que a mulher possui características diferentes que, em uma empresa, trazem equilíbrio à gestão. Defendo que o importante é buscar a profissão que te faça feliz. Ao descobrir sua vocação, independente de qual seja, dedique-se integralmente. Tenho certeza de que você não se arrependerá, mesmo passando por percalços, pois sua realização compensará no final. Escolhi a engenharia como carreira; a ferrovia veio como oportunidade de trabalho e me trouxe um grande laboratório de atividades técnicas, além do contato humano com milhares de pessoas — uma experiência única para minha vida.

6 – Tem alguma história pessoal ou episódio marcante que te inspira até hoje?

Em minha jornada de trabalho, desde abril de 1976 na ferrovia, desenvolvemos vários projetos. Na área de Segurança do Trabalho e Tráfego, enfrentávamos acidentes com “pingentes” (meninos/meninas) que andavam em cima dos carros de passageiros, desconhecendo a energia que alimentava os trens (década de 1980).
Buscamos as escolas ao longo dos ramais do Rio de Janeiro e iniciamos uma série de palestras. Conseguimos reduzir os acidentes, mas a direção da empresa não permitiu a continuidade do projeto. Passaram-se os anos. Em 31 de maio de 2007, a Rede Ferroviária Federal S.A. foi extinta pela Lei 11.843. Na semana seguinte, eu estava entrando no metrô no Centro, rumo à minha casa em Copacabana, refletindo e perguntando a Deus se meu trabalho teria valido a pena. Eu achava que nada do que tinha feito tinha realmente importado. Quando olhei para a porta do trem, vi um jovem sorrindo para mim. Só percebi que era comigo quando ele chamou meu nome:

“Dra. Clarice, é a senhora? Que bom vê-la!”
Respondi: “Sim, sou Clarice, mas não me lembro de você.”
Ele disse: “Fui seu aluno no SENAI. A senhora e o professor Adolfo me ensinaram muitas coisas importantes da vida, e eu me lembro até hoje.”

Pedi um abraço e, chorando, agradeci a Deus pela resposta de que minha vida não tinha sido em vão. Meus esforços, e os de tantos colegas, tinham valido a pena. Desde aquele dia, tenho a certeza de que valeu a pena cada erro e acerto.

7 – Que alerta urgente você deixaria para jovens engenheiros e gestores públicos sobre as ferrovias?

Essa pergunta é séria. Eu pediria que olhassem para o nosso mapa. Como as ferrovias brasileiras estão inseridas nele? O que queremos e para onde gostaríamos de ir? Aos gestores: priorizem as necessidades do país.
Aos engenheiros: preparem-se. Ainda acredito na profissão que transforma materiais e o ambiente em melhoria de vida para a sociedade.

8 – Na sua opinião, qual parte da memória ferroviária está mais em risco hoje: as estações, o material histórico ou as histórias das pessoas?

Tudo, infelizmente. Perdemos lindas estações, material histórico (171 anos) e, principalmente, o ferroviário. O acervo técnico e todo o conhecimento ferroviário foram jogados fora. Profissionais excelentes se perderam, e não construímos a sucessão dessa mão de obra. Hoje, para pesquisar sobre a ferrovia brasileira, precisamos buscar dados na Biblioteca do Congresso, em Washington.

9 – Quando você fez a transição de atuar mais tecnicamente para atuar também como liderança e advocacia dentro do setor ferroviário, qual foi o principal aprendizado desse processo?

Minha mudança começou quando tive a oportunidade de lidar, no campo, nas áreas operacionais, com milhares de pessoas, um crescimento incalculável para mim. Somando isso à experiência associativa, aprendi que, muitas vezes, precisamos retroceder um passo para avançar vários logo depois. E, principalmente: desistir, nunca.

10 – E olhando para os próximos 5 anos, qual avanço ou projeto você sonha ver concretizado — e que depende do engajamento de todos, além da técnica?

Que a ferrovia no setor de cargas se desenvolva e cresça, sem que o país perca seu controle de segurança nacional. Que projetos de ferrovias de passageiros, de longa distância e de turismo sejam modernizados e criados em todo o país. Que pensemos também na mobilidade urbana, que depende dos transportes sobre trilhos para funcionar adequadamente, evitando o modelo sobre pneus, que está esgotado.

O transporte rodoviário e o ferroviário não são excludentes; são complementares.

Que nosso Trem Bala vire realidade.

Finalizo com a frase eternizada pelo apaixonado ferroviário paulista, Eng. Godoy: “O Brasil trem jeito.”

Eu ainda acredito, e concordo!

Sobre Clarice Maria de Aquino Soraggi

Engenheira mecânica (UEG, 1974) com Mestrado em Engenharia de Segurança e Higiene do Trabalho (1976), Clarice Soraggi é uma das mais respeitadas referências do setor ferroviário brasileiro. Especialista em Prevenção de Perdas, Controle de Qualidade, Perícias Técnicas e Judiciais, Auditoria de Segurança, Saúde e Meio Ambiente, além de Engenharia Legal, Avaliações e Projetos, ela reúne uma trajetória marcada pela atuação técnica, institucional e histórica.

Com 25 anos de experiência direta nas ferrovias — em segurança do trabalho, tráfego, investigação e atendimento a acidentes, manutenção e construção de infra e superestrutura — Clarice consolidou um olhar profundo sobre os desafios e avanços do setor. Soma ainda 31 anos de atuação em projetos legislativos e acompanhamento junto aos poderes Executivo e Judiciário, ampliando a defesa do interesse público nos trilhos.

Como docente, lecionou por 8 anos em cursos de MBA voltados à Segurança do Trabalho em Ferrovias e Atendimento a Acidentes Ferroviários, na Universidade Gama Filho e na Estácio.

Sua contribuição no movimento associativo é igualmente expressiva: são 42 anos de trabalho na Associação de Engenheiros Ferroviários (AENFER), 27 anos na Federação das Associações de Engenheiros Ferroviários (FAEF) e 12 anos na Federação Nacional dos Engenheiros (FNE).

Uma carreira guiada pela técnica, pela memória ferroviária e por uma convicção que atravessa gerações: o Brasil trem jeito.

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