Investir em trilhos é caro, mas indispensável. Não dá para desperdiçar essas redes que já existem. Novos investimentos devem valorizar e fortalecer esses sistemas
O Brasil tem muito menos trilhos do que precisa. E além disso, os milhares de quilômetros de linhas que o Governo Federal gerencia, de diferentes formas, são muito mal cuidados. O desmonte da Rede Ferroviária Federal (RFFSA) nos anos 1990 levou a concessões de baixíssima qualidade na rede interestadual, e deixou os trechos urbanos sob responsabilidade da CBTU e da Trensurb, empresas públicas que, apesar de prestarem um serviço valioso, nunca receberam a devida atenção por parte do Governo Federal.
Os sistemas são antigos e nunca contaram com um projeto político estruturado, visando investimento, modernização ou ampliação. Ao contrário, sempre foram tratados como um problema e ameaçados de privatização, apesar de terem um enorme potencial de melhoria e ampliação do atendimento. O incêndio em uma composição da CBTU, no Recife, neste fim de semana, é apenas o exemplo mais recente desse abandono.
A rede interestadual foi concedida a um punhado de empresas privadas que trabalham segundo seus próprios interesses financeiros, focados no transporte de cargas. Foram contratos frouxos, sem exigências de qualidade, cobertura ou qualquer preocupação com o interesse e o controle públicos. Resultado: mantiveram apenas os eixos que os interessavam e abandonaram centenas de trechos sem nenhuma análise de impacto local e praticamente destruíram o transporte de passageiros.
Nos trens urbanos concedidos, a lógica foi a mesma. A preocupação principal é repassar à iniciativa privada, e não melhorar o serviço. O caso mais claro é a Supervia, concedida pelo estado do Rio de Janeiro há mais de 25 anos, num modelo péssimo, dependendo da superlotação para ser rentável, com total responsabilidade da empresa privada e sem exigências claras de qualidade e frequência. Também levou ao abandono de ramais, intervalos absurdos, trens velhos e a tarifa de trens mais cara do Brasil! As concessões da CPTM-SP, da CBTU-MG e do Metrô-RJ caminham no mesmo sentido.
Mesmo no atual governo progressista, a CBTU, órgão federal, segue incluída no Programa Nacional de Desestatização, ficando num limbo, impedidos de receber investimentos e participar de novos projetos do Ministério das Cidades. Ou seja, a privatização é tida como se fosse um caminho ‘natural’.
Assim como o setor de ônibus urbanos está percebendo, os trilhos privados já mostraram que o modelo atual de concessões está completamente falido. Conceder não resolve o problema de investimentos no transporte! A empresa privada só usa o que arrecada de tarifa, ou seja, só atua onde a superlotação ou a carga garantem rentabilidade, sem preocupação em manter cobertura e frequência. Ampliar a rede? Nem passa pela cabeça.
É preciso retomar o investimento público com fontes estáveis para garantir a disponibilidade e cobertura do serviço de transporte. Caso contrário, o resultado inevitável será a má qualidade e sucateamento.
O governo precisa mudar sua visão sobre a CBTU, a Trensurb e a rede da RFFSA, e orientar os estados para um novo modelo de gestão e investimento. Diante de tantos exemplos mal sucedidos no Brasil, não dá mais para tratar a privatização como solução única ou mágica. Está bastante claro que esse modelo não está funcionando!
Muito além da disputa entre operação pública ou privada, o mundo inteiro está concluindo que as redes de transportes precisam de recursos públicos diretos e contínuos, além de integração efetiva com os ônibus, bicicletas, outros modos e com os pedestres que chegam às estações.
O projeto piloto com seis ramais regionais de transporte de passageiros é muito pouco diante do que o país precisa. O governo precisa se debruçar seriamente sobre o tema e desenvolver um projeto para esses sistemas, assim como fez com o Marco Legal do Transporte Coletivo, para os ônibus e trilhos urbanos.
Nesse novo modelo, o poder público deve ter um papel central no planejamento, controle e investimento, garantindo que o serviço funcione independente do retorno financeiro imediato, pois os benefícios serão outros, nas cidades e na sociedade. Nesse caminho, o debate sobre a Malha Oeste, no Mato Grosso do Sul, publicações do Setorial de Transportes do PT e a carta ao presidente Lula, elaborada por trabalhadores do setor, apontam para uma direção mais promissora.
Investir em trilhos é caro, mas indispensável. Não dá para desperdiçar essas redes que já existem. Novos investimentos devem valorizar e fortalecer esses sistemas. Transporte é direito social, não deve ser tratado como problema a ser varrido para debaixo do tapete. É preciso trabalhar e investir para garantir esse direito e colher os benefícios sociais, econômicos e, marcadamente, ambientais.
Artigo original publicado na Revista Forum escrito por Por Rafael Calabria