As chamadas “autoestradas ferroviárias” já são usadas há décadas em França e Itália, mas só agora estão a chegar à Península Ibérica
Por Dinheiro Vivo, Diogo Ferreira Nunes – Da produção até à loja, artigos como roupas novas, móveis ou folhas de papel andam sempre de camião nas estradas da Europa. O transporte destes artigos gera poluição e trânsito, contribuindo para o agravamento da pegada carbónica. Mas a logística na Europa quer ser mais sustentável e está a apostar numa combinação com outros meios de transporte, como o navio e o comboio, que, com economias de escala, têm menor impacto ambiental. Exemplo disso são as “autoestradas ferroviárias”: são comboios de mercadorias que transportam os semirreboques dos camiões em vagões próprios, reduzindo a necessidade de pessoal, aumentando a segurança e diminuindo emissões carbónicas. O sistema já é usado há décadas em França e Itália, mas só agora está a chegar à Península Ibérica.
No início do mês, arrancaram os testes da primeira autoestrada ferroviária, que liga Valência a Madrid. Portugal está representado através da Medway: a transportadora de mercadorias sobre carris foi contratada pela espanhola Tramesa para rebocar estes comboios. As provas decorrem até ao final do próximo mês; a partir de setembro, haverá quatro serviços por semana nesta modalidade, para retirar das estradas cerca de 18 mil camiões por ano. O Dinheiro Vivo acompanhou, por dentro, uma das viagens de teste, num processo que demorou cerca de 48 horas. É a primeira vez que uma linha em bitola ibérica faz este serviço.
O comboio de mercadorias começou a ser montado no sábado, no novo dique Este do Porto de Valência, onde também estão estacionados milhares de automóveis. Os semirreboques vieram de Itália e foram transportados num navio de contentores da Transitalia, uma das empresas parceiras desta autoestrada. Assim que chegaram a Espanha, os atrelados foram retirados do navio por máquinas e colocados ao lado dos vagões pintados de verde.
No final dessa manhã, os semirreboques já estavam a ser movimentados para dentro dos vagões, através de uma grua operada pelos espanhóis da Tramesa. Ao contrário do que acontece com os contentores, a grua tem de “agarrar” nos semirreboques pela parte de baixo, muito perto das rodas. Tudo é controlado no solo através de um rádio-comando pendurado ao pescoço de um operário. Previamente, é necessário subir os apoios da frente antes da colocação de cada vagão. É a parte mais mecânica no meio de um processo que já está bastante automatizado. Há uma câmara na frente e atrás para se saber que a caixa está a ir parar ao sítio certo. Em fase de testes, há muita calibração neste procedimento.
Os semirreboques são posicionados nos vagões um em frente ao outro, pelo que a grua vira o reboque no ar, contentor sim, contentor não. A grua também roda no ar e em movimento para voltar à posição normal. Sabemos que os semirreboques estão no sítio certo quando se ouve o barulho do encaixe e vemos o sinal de “visto” num pequeno monitor colocado no vagão. O processo repetiu-se ao longo do sábado.
Voltámos no domingo de manhã ao Porto de Valência. Depois dos testes aos freios, o comboio está pronto para partir. Só que estamos numa zona não eletrificada, pelo que até lá chegarmos há uma unidade tratora a rebocar os vagões, nunca a mais de 20 km/h. São 11 horas e 42 minutos quando o comboio pára debaixo da catenária e separa-se a máquina a gasóleo das restantes composições. Não muito depois chega a locomotiva elétrica da Medway, ilustrada com a palavra “Futuro”.
Alugada aos suíços da Stadler, a máquina Euro 6000 vai rebocar 1740 toneladas de carga durante mais de 400 quilómetros. Este teste vai exigir todas as capacidades da locomotiva. Iremos passar por uma zona montanhosa, com bastante pendente. “É uma barbaridade”, ouvimos várias vezes da parte do pessoal responsável pela operação.
Pelas 13 horas e 5 minutos saímos oficialmente da zona do Porto de Valência. Como são 1740 toneladas de reboque, leva vários minutos até que o comboio ganhe velocidade. Não tem nada a ver com um comboio de passageiros, por exemplo. Em Catarroja, o comboio já consegue atingir os 80 km/h. Quando frena, o comboio chega a gerar mais de 2000kw para a rede elétrica. É o benefício de um comboio desta dimensão precisar de tanta energia para se mover. A linha à saída de Valência tem sido modernizada e nota-se como o comboio desliza sem vibrações ao longo da via. Acabamos por atingir os 100 km/h ao fim de 45 minutos.
São 14 horas e 7 minutos quando passamos a estação de Xativá. Vamos começar a subida. O manipulador está a 100%, mas a velocidade do comboio já baixou para 95 km/h. Mesmo assim, é uma velocidade muito boa. Em condições normais, não seria possível passar dos 60 km/h. O esforço está a ser cada vez maior. A locomotiva de vez em quando patina, sinal do elevado peso do material circulante. Não põe absolutamente nada em causa na circulação do comboio nem a sua segurança.
Vinte minutos depois, o comboio vai para a via de resguardo em Vallada, porque atrás segue um comboio de passageiros, que tem de nos ultrapassar. À nossa esquerda, vemos a futura linha de alta velocidade entre Valência e Alicante, que está em construção e que, por enquanto, não tem carris. O teste está a ser totalmente supervisionado pela Medway, para garantir que corre tudo bem.
Após sermos ultrapassados, o comboio arranca. Em plena subida e com 1740 toneladas atrás, a locomotiva começa a patinar e é necessário pôr areia para aumentar a tração do comboio e sair como deve ser do local. É como arrancar com um carro no meio de uma subida: o esforço é enorme. Alguns dos seis motores chegam a atingir os 100 graus celsius, pelo que vão sendo refrigerados. A locomotiva é tão potente que nunca baixamos dos 75 km/h. Mais adiante, os motores já atingem os 120 graus. Todos os ventiladores estão na máxima potência para garantir que nada falha. A refrigeração dos motores é feita a ar. Os equipamentos eletrónicos são refrigerados a água. Terminamos a subida em La Font de La Figuera pelas 15h10. Voltamos à via dupla e viramos para Albacete, afastando-nos de Alicante e do mar.
Passamos pela estação de La Encina, outrora muito importante para o tráfego de mercadorias e fundamental para refrescar as locomotivas a carvão, que necessitavam de muita água depois desta subida. Também havia mecânicos a bordo para o caso de qualquer avaria. À nossa esquerda, avistamos a linha de alta velocidade entre Alicante e Madrid. E, agora sim, acabou a parte de montanha. Ou seja, o comboio volta a circular a 100 km/h. Daqui até Albacete, seguimos praticamente sempre em reta, com curvas muito ligeiras, como se fosse uma autêntica autoestrada. Percorremos 210 quilómetros entre Valência e Albacete, onde a troca de maquinista dura dois minutos.
Seguimos viagem, constantemente a 100 km/h, com uma paisagem a alternar entre o seco e os solos agrícolas. Passamos por estações que não são mais do que pontos de cruzamento de comboios. É o retrato da “Espanha esvaziada”. Passamos em Minaya e nota-se que o estado da linha não é tão bom. Por aqui só há regionais… que são cada vez menos.
Voltamos a cruzar com um comboio de passageiros em Alcázar de San Juan, onde paramos pelas 17 horas e 46 minutos e lá ficamos durante 10 minutos. Estava tudo a correr muito bem, até que o maquinista é alertado para um dos semirreboques estar com a lona aberta, como se fosse descapotável. É necessário ligar para o controlo de tráfego e pedir permissão para parar o comboio num local seguro, sem interromper a circulação ferroviária, e tentar voltar a cobrir o semirreboque.
Paramos em Huerta de Valdecarábanos, a mais de 80 quilómetros de Madrid. Deixamos o fresco da locomotiva e reparamos que não há possibilidade de pôr a lona no sítio certo: a lona está demasiado próxima do fio elétrico e seria necessário arrombar o semirreboque, que tem cadeados de segurança. Foi preciso chamar pessoal da Transitalia (responsável pelos atrelados) e do gestor da infraestrutura (ADIF) para resolver a situação. Ao final da tarde de domingo, com a Espanha a disputar a final do campeonato da Europa de futebol, foi preciso esperar pelo final da partida para que viessem desligar a corrente elétrica.
Só depois da meia-noite e meia retomamos a viagem, seis horas depois de termos parado. Em uma hora chegámos ao depósito de Santa Catalina. Só que ainda foi preciso inverter a locomotiva, posicioná-la do outro lado do comboio e depois empurrar, em marcha-atrás, os vagões, que passariam para o terminal de Abroñigal no dia a seguir. A operação só ficou concluída pelas duas horas e 30 minutos.
Na manhã seguinte, os semirreboques já tinham sido retirados do comboio por máquinas próprias para serem recolhidos pelos camiões da Transitalia. Ao mesmo tempo, os vagões estavam a ser novamente carregados para voltarem para Valência. As roupas, os móveis e as folhas de papel já estavam quase a chegar ao destino.
Com as autoestradas ferroviárias a pouparem emissões e dezenas de motoristas de camiões, Espanha vai expandir o conceito para os percursos Algeciras-Saragoça e Saragoça-Tarragona, muito graças aos fundos para a descarbonização do Plano de Recuperação e Resiliência do país. A partir do próximo ano, Portugal também vai ter uma autoestrada ferroviária entre Elvas e Entroncamento. O caminho da descarbonização faz-se sobre carris.