I. Expressão de Pesar pela Ferrofrente
A Organização Não Governamental Ferrofrente, em nome de toda a sua equipe e diretoria, manifesta seu mais profundo pesar pelo falecimento do Papa Francisco, ocorrido em 21 de abril de 2025. Recebemos com consternação a notícia da partida de Jorge Mario Bergoglio, o 266º Bispo de Roma e líder da Igreja Católica, uma figura de inegável relevância espiritual e moral em nosso tempo.
Reconhecemos o impacto global de seu pontificado, que se estendeu por mais de doze anos, e nos solidarizamos com os milhões de católicos e pessoas de boa vontade em todo o mundo que hoje sentem a sua perda. A comoção expressa por líderes globais e as manifestações de luto atestam a amplitude de sua influência e do respeito que angariou.
Recordaremos o Papa Francisco não apenas por sua posição, mas pelas qualidades humanas que transpareceram em seu ministério: a humildade marcante desde sua primeira saudação ao mundo (“Buonasera”), a ênfase constante na misericórdia e uma proximidade genuína com as pessoas comuns. Sua dedicação ao serviço, perseverando mesmo diante das enfermidades que o acometeram nos últimos tempos, serve como um testemunho de seu compromisso. A Ferrofrente, que tem como valor central a defesa do interesse público e da democracia, vê na postura de serviço e na simplicidade do Papa Francisco um exemplo de liderança voltada para a conexão humana e o bem comum, valores que consideramos essenciais para qualquer esfera de atuação pública.
II. Legado de Coragem e Humanidade
O pontificado de Francisco deixa um legado de coragem na defesa da justiça social, dos marginalizados e da dignidade humana. Sua atuação o caracterizou como um “papa das periferias”, alguém que buscou ativamente dar voz aos que frequentemente não são ouvidos. Lembramos, com respeito e admiração, momentos emblemáticos que revelaram sua firmeza e compaixão:
- O Grito de Lampedusa contra a Indiferença: Em julho de 2013, em sua primeira viagem para fora do Vaticano, o Papa Francisco escolheu visitar a ilha italiana de Lampedusa. Este local, símbolo da tragédia dos migrantes que tentam atravessar o Mediterrâneo – descrito por ele como “o maior cemitério da Europa” – tornou-se palco de um dos seus mais fortes pronunciamentos. Ali, ele denunciou veementemente a “globalização da indiferença”, a apatia de um mundo que se acostumou com o sofrimento alheio. Suas palavras, como a pergunta lancinante “Quem de nós chorou?” pelos irmãos e irmãs que perderam a vida buscando esperança, ecoaram como um chamado universal à responsabilidade, à solidariedade e à partilha. Este gesto não foi apenas um ato de compaixão, mas uma corajosa crítica aos sistemas políticos e econômicos e à “cultura do bem-estar” que, segundo ele, nos torna insensíveis e gera essas tragédias humanas, ignorando seu custo em vidas. Foi um desafio direto à inação global, exigindo empatia e ação concreta.
- A Encíclica Laudato Si’ e a Ecologia Integral: Em 2015, com a encíclica Laudato Si’ sobre o “Cuidado da Casa Comum”, o Papa Francisco ofereceu ao mundo uma profunda reflexão sobre a crise socioambiental. Sua mensagem central foi a da “ecologia integral”, a compreensão de que “tudo está interligado” e que o clamor da Terra e o clamor dos pobres são inseparáveis. Ele criticou duramente o paradigma tecnocrático dominante e os modelos de desenvolvimento baseados no crescimento ilimitado e na busca incessante pelo lucro, que degradam o planeta e afetam desproporcionalmente as populações mais vulneráveis. Ao afirmar que “não podemos enfrentar adequadamente a degradação ambiental, se não prestarmos atenção às causas que têm a ver com a degradação humana e social”, Francisco demonstrou coragem ao desafiar poderosos interesses econômicos e a inércia política global, propondo uma mudança radical em nossos estilos de vida, produção e consumo. A encíclica ressaltou a inseparabilidade da justiça ambiental e da justiça social, um princípio que desafia abordagens fragmentadas para os problemas complexos do nosso tempo e ressoa com a visão da Ferrofrente sobre como infraestrutura e desenvolvimento devem servir ao bem-estar social.
- A Encíclica Fratelli Tutti e a Fraternidade Universal: Diante de um mundo marcado por divisões, muros e individualismo, acentuados pela pandemia de COVID-19, o Papa Francisco publicou, em 2020, a encíclica Fratelli Tutti sobre a fraternidade e a amizade social. Inspirado em São Francisco de Assis e em seu diálogo com o Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb, ele fez um apelo veemente à construção de uma fraternidade universal que ultrapasse barreiras geográficas, sociais e religiosas. A encíclica apresenta uma crítica contundente à “cultura do descarte”, ao nacionalismo fechado, ao racismo e à lógica de mercado que ignora a dignidade humana. Propôs uma “melhor política”, voltada para o bem comum, e reafirmou o diálogo como caminho essencial para a paz e a convivência. Esta encíclica foi um ato de coragem ao confrontar diretamente tendências globais de polarização e xenofobia, propondo uma visão alternativa baseada na solidariedade. Além disso, Fratelli Tutti não foi apenas um documento teórico; refletiu a própria prática do Papa, como seu histórico encontro e assinatura da Declaração sobre a Fraternidade Humana com o líder muçulmano. Isso demonstra que o diálogo inter-religioso, para ele, não era mera tolerância, mas uma ação concreta e fundamental para construir pontes e promover a paz num mundo fraturado.
Estes são apenas alguns exemplos que ilustram a coerência de um pontificado voltado para as questões sociais mais urgentes, sempre ao lado dos mais pobres e marginalizados, como também demonstrado em gestos de profunda humildade, como a insistência em lavar os pés de detentos, incluindo mulheres e pessoas de outras crenças, durante a Quinta-feira Santa.
III. O Primeiro Papa Sul-Americano: Um Marco Histórico
A eleição de Jorge Mario Bergoglio como Papa Francisco, em 2013, representou um marco histórico inegável. Foi a primeira vez que um homem nascido na América Latina, no Hemisfério Sul, ascendeu ao papado. Mais ainda, foi o primeiro papa não europeu em mais de 1.200 anos, um “papa vindo do fim do mundo”, como ele mesmo se descreveu.
Sua origem trouxe para o Vaticano uma perspectiva vital, moldada pelas realidades de um continente com a maior população católica do mundo, mas também marcado por profundas desigualdades sociais, desafios políticos complexos e uma rica diversidade cultural. Sua eleição foi vista como um reconhecimento da crescente importância do Sul Global dentro da Igreja Católica e do mundo. A ênfase de seu pontificado em temas como a pobreza, a justiça social, as migrações e a crise ambiental refletiu, em grande medida, as preocupações prementes de sua região de origem, conferindo-lhes uma nova centralidade no discurso da Igreja.
Por tudo isso, a Ferrofrente lamenta profundamente que este capítulo singular da história, a presença de um sul-americano no Trono de Pedro, tenha se encerrado. Reconhecemos a singularidade deste evento (“algo que dificilmente se reproduzirá”) e a perda que sua partida representa não apenas para os católicos, mas para toda a América Latina, que viu nele um símbolo de representatividade e uma voz influente que ecoava muitas de suas próprias lutas e esperanças. Sua eleição não foi apenas simbólica; refletiu uma mudança demográfica real no catolicismo global e potencialmente acelerou um deslocamento no centro de gravidade da Igreja, tornando sua liderança mais conectada às realidades vividas pela maioria de seus fiéis no Sul Global.
IV. A Perspectiva da Ferrofrente: Laicidade e Respeito Universal
Ao expressar nosso pesar pela morte do Papa Francisco, a Ferrofrente reafirma seu compromisso inabalável com o princípio do Estado laico no Brasil, um pilar fundamental da nossa democracia e consagrado em nossa Constituição Federal. Entendemos que a laicidade, que garante a separação entre Estado e Igreja e veda relações de dependência ou aliança entre o poder público e cultos religiosos, é a condição essencial para assegurar a liberdade de consciência e de crença para todos os cidadãos – sejam eles religiosos de diversas matrizes ou não religiosos.
A importância do Estado laico reside precisamente em sua capacidade de proteger a pluralidade de um país diverso como o Brasil, impedindo que dogmas de uma fé específica se convertam em leis para todos e garantindo que as políticas públicas sejam pautadas pelo interesse comum e pela razão pública, não por preceitos religiosos. A laicidade não é hostilidade à religião, mas a garantia de um espaço público neutro onde todas as crenças (e a ausência delas) possam coexistir em pé de igualdade e respeito mútuo.
Ao mesmo tempo em que defendemos vigorosamente a laicidade do Estado, a Ferrofrente expressa seu profundo respeito por todas as religiões e manifestações de fé presentes em nossa sociedade. Valorizamos a diversidade religiosa como uma riqueza cultural e reconhecemos a liberdade religiosa como um direito humano fundamental. Nesse sentido, reconhecemos e valorizamos os esforços do próprio Papa Francisco em promover o diálogo inter-religioso. Seus encontros e documentos conjuntos com líderes de outras tradições, como o Islamismo e o Judaísmo, bem como seus apelos contra o extremismo religioso, demonstram que é possível manter convicções firmes e, simultaneamente, buscar pontes de entendimento e colaboração em prol da paz e do bem comum. A postura da Ferrofrente reflete, assim, um pluralismo de princípios: a defesa intransigente do quadro legal laico que garante direitos iguais, combinada com a valorização ativa da diversidade de crenças e o respeito pelo diálogo construtivo, encontrando um eco na própria prática do pontífice que hoje lamentamos.
V. Conclusão
A ONG Ferrofrente reitera suas mais sinceras condolências à comunidade católica no Brasil e no mundo, bem como a todos aqueles que encontraram no Papa Francisco uma fonte de inspiração e esperança.
Seu legado, marcado por apelos à compaixão, à justiça social, ao cuidado com nossa casa comum, à fraternidade universal e à busca incansável pela paz , transcende as fronteiras da religião. Suas palavras e gestos continuarão a desafiar a consciência de todos, independentemente de credo, a trabalharmos juntos por um mundo mais justo, humano, solidário e sustentável.
São Paulo, 22 de abril de 2025.
José Manoel Ferreira Gonçalves – Presidente da FerroFrente